Na sequência da abertura da discussão pública relativa a quatro pedidos de informação prévia sobre a viabilidade da realização de quatro operações de loteamento abrangendo os hospitais da Colina de Sant´ Ana - Hospital Miguel Bombarda, Hospital de São José, Hospital dos Capuchos e Hospital de Santa Marta, publicitada pela Câmara Municipal de Lisboa, as direcções nacionais do ICOM (Conselho Internacional dos Museus) e do ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios), no cumprimento das suas respectivas missões, consideram que:
Atendendo à dimensão e importância dos imóveis e da área abrangida, e ao facto de estarem em causa quatro projectos simultâneos, o prazo de doze dias (de 1 a 12 de Julho de 2013) é manifestamente insuficiente e dificulta a efectiva participação e a defesa dos interesses dos cidadãos e do relevantíssimo património cultural da cidade que aqui está em causa;
Estando em causa a transformação fundiária, alterações de uso, modificação e demolição de imóveis, afectando património classificado e, globalmente, a intervenção num conjunto patrimonial de excepcional relevância, referenciado na Carta Municipal do Património, considera-se imprescindível a elaboração de um plano de pormenor de salvaguarda;
A estratigrafia histórica, patrimonial e arquitectónica da Colina de Sant´ Ana é complexa, correspondendo à sobreposição de duas histórias muito antigas:
a) uma história ligada à saúde (Leprosaria de São Lázaro, séc. XIV, e o primeiro grande hospital português, o Hospital de Todos os Santos, 1492), e b) uma história de conventos. Estas duas histórias cruzam-se num primeiro momento em 1775, quando o que restava do edifício do Colégio de Santo Antão-o-Novo, depois do terramoto, é escolhido para albergar o Hospital Real de São José e, sobretudo, depois de 1834, quando os antigos conventos são escolhidos para o reordenamento dos hospitais oitocentistas;
As duas histórias são muito significativas para a cidade de Lisboa e para o país, não apenas pela memória e pelo passado, mas, sobretudo, pelo presente e pelo futuro. As suas múltiplas evidências materiais e imateriais devem ser respeitadas e preservadas para as gerações futuras, porque estamos a falar de uma cidade histórica de valor excepcional cuja qualidade cultural queremos e devemos conservar. Nos projetos propostos, esta estratigrafia histórica é amputada, limitando-se os projectos a isolar alguns elementos patrimoniais, destruindo a coerência e o sentido para a cidade deste importante conjunto patrimonial.
Analisados globalmente, os projetos agora sob discussão colocam em causa não só a estrutura conventual que a partir do século XVI marcou esta zona da cidade, como, e sobretudo, o legado da história da medicina e da saúde da Colina de Sant´ Ana. É necessário lembrar que os conventos foram ao longo do tempo adaptados aos novos usos sem que as suas características fundamentais fossem, por isso, suprimidas. Assim, mantendo a memória conventual, foi possível que esta colina tivesse sido o berço do ensino da medicina em Portugal (Escola Médico-Cirúrgica, 1836), e fossem ali criados importantes institutos de investigação e ensino da medicina e saúde por onde passaram centenas de milhares de estudantes, médicos e doentes. Um desses institutos, o Instituto de Medicina Legal (1879) tem inclusivamente a sua demolição prevista.
A história da medicina na Colina de Sant´Ana está ela própria ligada a momentos fundamentais da história portuguesa, da importância de Miguel Bombarda no despontar da primeira República, ao papel da medicina e dos médicos no surgimento de uma maior igualdade e democracia, quando começaram a funcionar os primeiros hospitais públicos abertos a todos, até ao testemunho físico dos lugares onde ocorreram factos científicos relevantes que contribuiram decisivamente para a atribuição do primeiro prémio Nobel a um português, o médico Egas Moniz.
Acresce a repetição, agora muito agravada pela dimensão do que está em causa, de um erro urbanístico recorrente: o de se retirar emprego e serviços de zonas carenciadas, para oferecer ainda mais habitações de luxo em bairros onde abundam excepcionais edifícios habitacionais antigos e degradados à espera de reabilitação. O serviço eminentemente público destes lugares excepcionais e destas instituições torna-se agora pretexto para um processo de privatização das antigas cercas conventuais, que os hospitais, apesar de todas as suas transformações, ainda preservaram.
À exceção de um núcleo "cultural" no Pavilhão de Segurança, cujos contornos ainda estão por desenhar, fica a ideia que não passou um único doente ou médico pela Colina de Sant´ Ana nos últimos 600 anos.
Assim, as Direcções do ICOM-Portugal e do ICOMOS-Portugal:
1. Exprimem o seu veemente protesto pelo reduzido prazo de discussão pública dos referidos projetos (1 a 12 de Julho), tendo em conta a dimensão, importância patrimonial, arquitectónica, histórica e científica do conjunto, e ainda o impacto que terão na Colina de Sant´ Ana e, em geral, na cidade de Lisboa;
2. Repudiam o apagar da memória da Colina de Sant´ Ana, da sua história intimamente relacionada de conventos e hospitais sedimentada ao longo de muitos séculos, pois apesar da manutenção de alguns elementos dos antigos conventos, e respectivo património integrado (por imposição legal resultante de se tratar de imóveis classificados no todo ou em parte), é destruído o maior e mais importante conjunto de património integrado da medicina e saúde do nosso país, ao mesmo tempo que se subverte a lógica urbana que agregou conjuntos conventuais e espaços hospitalares;
3. Expressam a sua mais profunda preocupação pelo destino previsto para o património edificado, conventual, da medicina e saúde, bem como as suas vastas coleções de instrumentos científicos, ceras anatómicas e equipamento hospitalar histórico, arquivos e bibliotecas;
4. Apelam a um debate público alargado, envolvendo as diferentes tutelas, as universidades, a comunidade técnica e científica, e os cidadãos em geral, no sentido de encontrar novos usos adaptáveis às pré-existências e não o contrário; com outra escala mais adequada às circunstâncias actuais do país e ao excesso de construção nova e défice de verdadeira reabilitação que ainda existe. Onde se possa incluir também um plano científico e cultural integrado e multidisciplinar de preservação e musealização do património da medicina e saúde da Colina de Sant´ Ana, tendo como unidade nuclear o antigo Colégio de Sto. Antão-o-Novo, no Hospital de S. José (que está previsto ficar a cargo da CML).
Em 2011, o ICOM-Portugal já se havia pronunciado sobre a importância deste património (Preservação e Valorização do Património da Saúde na Colina de Sant´ Ana, ICOM-Portugal, Janeiro 2011 ) e o ICOMOS-Portugal dedicou o dia 23 de Setembro desse ano, nas Jornadas Europeias do Património: Património e Paisagem Urbana, à divulgação de outro tipo de propostas para a Salvaguarda da Colina de Sant´ Ana co-organizando o II Seminário Património Hospitalar de Lisboa, no Hospital de São José. Nestes dois anos, o trabalho de inventariação, musealização e divulgação deste património, até então em larga medida desconhecido dos lisboetas, feito continuada e persistentemente por diversas equipas universitárias e outras, vem confirmar a sua importância e riqueza. A sua destruição constituiria um intolerável ato lesivo para Lisboa. Estamos confiantes que tal não acontecerá e que serão encontradas soluções que preservem a complexa e densa história desta Colina de Lisboa.
9 de Julho de 2013
Luís Raposo, Presidente do ICOM-Portugal e Ana Paula Amendoeira, Presidente do ICOMOS-Portugal
« Voltar